Em maio de 2025, a Câmara Federal de Apelações da Argentina resolveu um litígio de alto impacto fiscal no caso “Compañía de Transmisión del Mercosur S.A.” (processo n.º 9939/2019). O conflito girava em torno de um ajuste praticado pela Administração Federal de Receitas Públicas (AFIP), relacionado à correta aplicação das normas de preços de transferência (PT) em operações intragrupo.
Esta decisão não só resolveu uma controvérsia pontual, como também estabeleceu critérios relevantes sobre a forma como os contribuintes devem fundamentar a razoabilidade das margens e preços declarados perante a autoridade fiscal.
Antecedentes e objeto da controvérsia
A Compañía de Transmisión del Mercosur S.A., dedicada à transmissão de energia elétrica no âmbito de uma estrutura de grupo multinacional, mantinha operações com partes relacionadas no exterior.
A AFIP, ao revisar sua declaração, determinou que as tarifas acordadas nessas transações não refletiam as condições de mercado exigidas pelo princípio da plena concorrência (arm’s length principle), previsto tanto na legislação argentina (Lei do Imposto sobre o Lucro) quanto nas Diretrizes da OCDE.
O ajuste proposto consistia em aumentar a receita tributável através da aplicação de margens consideradas mais próximas dos valores de mercado, o que gerava um aumento significativo da base tributável e, consequentemente, da carga tributária.
Posição da AFIP
A autoridade fiscal sustentou que a margem de rentabilidade relatada pela empresa estava abaixo do intervalo interquartil obtido de comparativos independentes, o que evidenciava, em sua opinião, uma subvalorização nas operações. Além disso, questionou a metodologia aplicada pelo contribuinte, apontando que apresentava omissões nos ajustes de comparabilidade e não incorporava dados contemporâneos ao período fiscal auditado.
Da mesma forma, a AFIP alertou sobre o risco de erosão da base tributável, uma vez que as operações eram realizadas com entidades do grupo localizadas em jurisdições com tributação baixa ou nula. Para o órgão, essas circunstâncias justificavam o ajuste proposto e exigiam uma correção para alinhar as transações às condições de mercado.
Argumentos da defesa
Por sua vez, a empresa argumentou que os preços aplicados eram respaldados por condições contratuais e operacionais específicas, decorrentes de acordos de longo prazo e de obrigações técnicas próprias do setor elétrico. Segundo a defesa, a análise de comparabilidade deveria considerar fatores como a capacidade instalada, a sazonalidade da demanda e as restrições regulatórias, todos elementos que incidiam diretamente nas margens obtidas.
A empresa também sustentou que as diferenças de rentabilidade em relação às empresas comparáveis não eram indicativas de manipulação de preços, mas respondiam a condições econômicas extraordinárias registradas no período fiscal examinado, que haviam impactado sua rentabilidade.
Critérios e fundamentos da decisão
A Câmara de Apelações apoiou parcialmente a posição da AFIP, estabelecendo diretrizes importantes:
- Interpretação estrita do princípio da plena concorrência: O tribunal reafirmou que as operações entre partes relacionadas devem situar-se dentro dos parâmetros de mercado, avaliados com base em comparáveis confiáveis e metodologias reconhecidas internacionalmente.
- Ônus da prova reforçado para o contribuinte: Quando a autoridade fiscal apresenta evidências que questionam as margens, cabe ao contribuinte apresentar documentação sólida que justifique qualquer desvio do intervalo interquartil.
- Importância da documentação contemporânea: A decisão ressaltou que os estudos de preços de transferência devem ser elaborados com dados atualizados para o período fiscal em questão, evitando a dependência de informações históricas que não reflitam as condições vigentes.
- Avaliação integral da análise funcional: Destacou-se a necessidade de os relatórios incluírem uma descrição detalhada das funções, ativos e riscos assumidos, bem como ajustes fundamentados por diferenças entre o contribuinte e as empresas comparáveis.
Relevância para o regime argentino de preços de transferência
Este caso estabelece um precedente importante em várias frentes:
- Maior rigor nos estudos de PT: As empresas multinacionais com operações na Argentina deverão adotar metodologias robustas, com seleção cuidadosa de comparáveis e aplicação consistente de ajustes de comparabilidade.
- Fortalecimento da posição da AFIP: A decisão confirma que a autoridade pode rejeitar análises insuficientes e propor ajustes com base em seus próprios estudos, desde que estes cumpram os padrões da regulamentação e das Diretrizes da OCDE.
- Abordagem preventiva: As empresas deverão antecipar possíveis questionamentos e preparar evidências técnicas que comprovem a razoabilidade de seus preços, mesmo em contextos de flutuações econômicas ou particularidades setoriais.
Implicações práticas para o setor energético e outros setores regulados
Embora o caso se enquadre no setor elétrico, suas conclusões podem ser extrapoladas para outras indústrias reguladas, como hidrocarbonetos, telecomunicações e transporte. Nesses setores, as tarifas e condições operacionais geralmente estão sujeitas a normas técnicas e regulatórias que podem influenciar a rentabilidade, mas que também devem ser comprovadas e documentadas para fins de preços de transferência.
Conclusão
Esta decisão reafirma que, na Argentina, o cumprimento das normas de preços de transferência exige uma abordagem proativa, apoiada por evidências contemporâneas, análise funcional rigorosa e uma defesa técnica bem documentada. As empresas que não dispõem de políticas sólidas de PT e documentação oportuna correm um risco elevado de enfrentar ajustes significativos, com impacto direto em sua carga tributária e posição financeira.
Fonte: TPCases