Preços de transferência e mineração: programa OCDE–IGF BEPS in Mining

outubro 16, 2025

A exploração de recursos minerais representa, em muitos países em desenvolvimento, não apenas uma fonte significativa de receitas fiscais, mas também um âmbito crítico em que as empresas multinacionais podem recorrer a estratégias sofisticadas de transferência de lucros. Nesse contexto, o programa OCDE–IGF BEPS in Mining surge como uma iniciativa especializada para mitigar os riscos próprios do setor de mineração relacionados à erosão da base tributária e à transferência de lucros (BEPS). 

Do ponto de vista da tributação internacional, um dos riscos mais relevantes é que os preços aplicados em transações intragrupo (por exemplo, vendas de concentrados minerais entre filiais) não reflitam as condições de mercado (ou seja, não cumpram o princípio da “plena concorrência”). O programa reconhece esse risco e propõe ferramentas setoriais adaptadas para combatê-lo. 

Este artigo analisa o quadro conceitual, os desafios específicos do setor de mineração em matéria de preços de transferência, o conteúdo e o alcance do programa OCDE-IGF e algumas reflexões críticas sobre seus desafios de implementação. 

Quadro conceitual geral: BEPS e preços de transferência 

BEPS: definição e alcance 

O termo BEPS (Base Erosion and Profit Shifting, “erosão da base tributária e transferência de lucros”) refere-se a estratégias de planejamento tributário internacional por meio das quais empresas multinacionais exploram lacunas legais, desconexões normativas ou assimetrias entre sistemas tributários para reduzir suas cargas tributárias efetivas ou transferir lucros para jurisdições com baixa tributação. 

No âmbito do projeto BEPS da OCDE/G20, foram definidas 15 ações destinadas a equipar as administrações tributárias com ferramentas para enfrentar essas práticas. Entre elas, as ações 8 a 10 estão particularmente ligadas aos preços de transferência e ao alinhamento dos resultados com a criação de valor. 

Preços de transferência e seu papel no BEPS 

Os preços de transferência regulam as condições das transações entre entidades vinculadas de um grupo multinacional (venda de bens, prestação de serviços, financiamento, licenças, etc.). Quando essas transações não são fixadas a preços comparáveis aos que seriam estabelecidos por empresas independentes em condições semelhantes, abre-se a possibilidade de que os lucros sejam transferidos artificialmente entre jurisdições. 

O guia mais reconhecido para este âmbito é o OCDE Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations, que estabelece princípios e metodologias para avaliar e corrigir preços que não cumprem o critério de comparação “arm’s length”. 

No entanto, o setor de mineração apresenta desafios especiais: a falta de comparáveis (minerais transformados, concentrados), a heterogeneidade em qualidade, transporte e custos, as estruturas de integração vertical (da extração à refinação) e o uso de centros de comercialização intermediários ou “hubs” em jurisdições de baixa tributação. 

O programa OCDE–IGF BEPS in Mining 

Objetivos e estrutura 

O programa BEPS in Mining é uma colaboração entre a OCDE (através do seu Centro de Política Fiscal e Administração) e o Fórum Intergovernamental sobre Mineração, Minerais, Metais e Desenvolvimento Sustentável (IGF). Seu objetivo é fortalecer a capacidade técnica dos países ricos em recursos minerais para:  

  • Identificar e mitigar riscos de erosão fiscal (BEPS) específicos do setor extrativo. 
  • Desenvolver ferramentas práticas (guias, kits de ferramentas, notas setoriais) que adaptem os princípios de preços de transferência ao contexto da mineração. 
  • Prestar assistência direta a países específicos para avaliação de riscos, apoio em auditorias, formação e recomendações normativas. 

A estratégia do programa pode ser vista como “de um para muitos” (ferramentas públicas) e “um para um” (consultoria específica para países). 

Áreas temáticas abordadas 

Embora os preços de transferência sejam um foco central, o programa reconhece que a perda de receitas fiscais na mineração pode ter várias causas. De fato, a literatura programática identifica várias áreas críticas: 

  • Práticas abusivas de preços de transferência na venda de minerais entre partes relacionadas, consistindo na subavaliação do produto. 
  • Deduções excessivas de juros (aproveitamento do financiamento intragrupo). 
  • Subvalorização das exportações de minerais — ou seja, fixação de preços abaixo do que corresponderia em condições independentes. 
  • Incentivos fiscais excessivos, que podem corroer a base tributável sem gerar o investimento ou desenvolvimento prometido. 
  • Cláusulas de estabilização fiscal (que congelam os termos fiscais contratuais e limitam a aplicação de novas melhorias normativas). 
  • Tratados internacionais e abuso de tratados, que podem permitir a mitigação de impostos por meio de estruturas de intermediação internacional. 
  • Transferências indiretas de ativos minerais, em que a mudança de controle de entidades pode evitar tributos locais. 
  • Acordos de “metals streaming” / financiamento com royalties futuros e acordos de cobertura abusivos. 

Em suma, o programa não se limita a preços de transferência, embora estes representem seu eixo técnico mais distintivo. 

O quadro de preços dos minerais 

Um dos elementos mais recentes e ambiciosos do programa é a elaboração do “Determining the Price of Minerals: A Transfer Pricing Framework” (Nota Prática), que procura adaptar os princípios dos preços de transferência aos desafios específicos do setor mineiro. 

Este documento tem como objetivo: 

  1. Identificar os fatores econômicos fundamentais que determinam o preço de um mineral (qualidade, teor, grau, transporte, processamento, risco, volume, custo de capital, etc.). 
  2. Aplicar o princípio do Preço Comparável Não Controlado (CUP) (ou métodos comparáveis) adaptado ao contexto mineral. 
  3. Complementar-se com “cronogramas” específicos para minerais particulares, como lítio, cobre ou bauxita — aplicações práticas do quadro geral.  
  4. Oferecer abordagens administrativas simplificadas para jurisdições com limitações de capacidade técnica. 

Por exemplo, está sendo consultada publicamente uma versão piloto do kit de ferramentas para cobre. 

Essa abordagem setorial visa superar a limitação clássica dos preços de transferência na mineração: a escassez (ou inacessibilidade) de transações independentes verdadeiramente comparáveis. 

Casos de aplicação: Zâmbia 

Um exemplo concreto do programa é o apoio prestado à Zâmbia, um país com alta atividade mineradora (cobre). Identificou-se que certas empresas mineradoras vendiam o cobre diretamente a filiais de comercialização ou refinarias localizadas em jurisdições de baixa tributação, a preços artificialmente baixos. Isso representava um mecanismo de abuso de preços de transferência para transferir lucros para fora da Zâmbia. O programa apoiou a avaliação de riscos e auditorias da administração tributária local (Zambia Revenue Authority).  

Este caso ilustra uma prática típica na mineração: o uso de “hubs” de comercialização ou centros de trading internacional como veículo para extrair rendimentos do país produtor. 

Aspectos técnicos: particularidades dos preços de transferência na mineração 

Algumas das áreas mais desafiadoras e relevantes na prática são: 

  1. Identificação do preço comparável (CUP) para minerais

  • Muitas vezes, não existem transações independentes idênticas (por exemplo, concentrado de cobre enviado para um porto com condições semelhantes). 
  • O quadro “Determining the Price of Minerals” propõe comparações com preços de mercado (spot), índices de minerais, ajustes por qualidade/lei, transporte e condições de entrega. 
  • Podem ser usados “benchmarks de mercado” ajustados, embora seja fundamental fazer ajustes por diferenças de volume, qualidade, riscos logísticos, tratamento posterior, entre outros. 
  • Na ausência de comparativos confiáveis, pode ser necessário aplicar métodos alternativos (por exemplo, margem líquida, divisão de lucros) como segundo recurso. 
  1. Ajustes por transporte, frete, seguros e logística

Uma subsidiária de mineração pode vender concentrado “f.o.b. porto local”, enquanto a subsidiária compradora incorre em frete internacional. Os ajustes devem refletir essas diferenças reais. 

Se esses custos não forem aperfeiçoados, podem ser usados como mecanismos para manipular a margem. 

  1. Risco e retorno do capital investido

O preço deve refletir um retorno adequado para a subsidiária de mineração, considerando os riscos (geológicos, operacionais, de mercado) e o custo de capital. Isso pode variar significativamente entre os projetos. 

  1. Integração vertical e funções assumidas

Se uma subsidiária mineradora também realizar funções de processamento, refino ou comercialização, deve-se avaliar quanto valor agregado ela gerou e como distribuir a rentabilidade entre as funções. Nesses casos, o esquema de value split ou repartição de lucros pode ser aplicável. 

  1. Financiamento intragrupo e deduções de juros

Outra forma comum de transferência de lucros é por meio de financiamentos internos com taxas elevadas, deduzindo juros no país minerador. O programa antecipa esse risco e o considera um canal complementar de erosão fiscal. 

  1. Capacidade administrativa limitada

Muitos países com mineração enfrentam barreiras técnicas (laboratórios de qualidade mineral, pessoal especializado, acesso a dados de mercado). O programa propõe abordagens simplificadas, safe harbours ou guias setoriais que reduzem a carga administrativa.  

  1. Documentação e auditoria

As administrações devem dispor de documentação técnica robusta que justifique os preços selecionados. A defesa contra ajustes exige que o contribuinte possa demonstrar que seguiu o método mais apropriado e avaliou a comparabilidade, os ajustes e as premissas. 

Desafios e críticas potenciais 

Embora o programa seja muito ambicioso e tenha grande potencial, há vários desafios que devem ser destacados: 

  1. Disponibilidade de dados comparáveis: Em muitos países, não há transações independentes suficientes que sirvam de referência, o que limita a aplicabilidade do método CUP, exceto com ajustes extensos. 
  2. Capacidade técnica local: Aplicar as diretrizes setoriais exige especialistas com conhecimento em mineração, acesso a dados geológicos e econômicos e laboratórios para verificar a qualidade mineral. 
  3. Custos de implementação: Para os países, realizar auditorias especializadas consome recursos (tempo, pessoal especializado). 
  4. Aceitação pelas empresas: As empresas de mineração podem questionar ajustes agressivos se os preços escolhidos reduzirem sua margem esperada. 
  5. Litígios e encargos tributários internacionais: Podem surgir disputas internacionais se a administração ajustar os preços e a empresa propor mecanismos de resolução (arbitragem, acordos mútuos). 
  6. Simplificação excessiva em safe harbours: Se forem oferecidas margens padronizadas, elas podem induzir distorções ou ser exploradas por contribuintes com projetos mais arriscados do que o “padrão”. 
  7. Transformações do sistema tributário internacional: Mudanças futuras na arquitetura tributária global (por exemplo, os pilares do G20/OCDE, impostos mínimos globais) podem exigir adaptações da abordagem. 

Conclusão e recomendações 

O programa OCDE–IGF BEPS in Mining representa um esforço inovador para levar a disciplina de preços de transferência a um setor intensamente complexo como o de mineração. Seu valor distintivo é que adapta os princípios gerais do BEPS às realidades do mercado de minerais, fornecendo ferramentas práticas para países com capacidade técnica limitada. 

Para que o programa tenha um impacto real, é fundamental que os países destinatários: 

  • Fortaleçam seu pessoal técnico em mineração e tributação internacional. 
  • Estabeleçam mecanismos de cooperação internacional para compartilhar dados do mercado mineral. 
  • Adotem as diretrizes de forma gradual, com pilotos e validações locais. 
  • Promovam um diálogo construtivo com a indústria para alcançar previsibilidade e evitar litígios excessivos.  
  • Monitorem e revisem periodicamente as premissas de preços e ajustes diante das mudanças no mercado global. 

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Fonte: OCDE

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