A decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância da Bélgica em junho de 2025, no caso Bélgica vs “ACQ Lender” (Processo n.º 24/973/A), insere-se na crescente atenção que as operações de financiamento intragrupo recebem em matéria de preços de transferência. A controvérsia girou em torno da dedutibilidade dos juros pagos por um empréstimo interno utilizado para financiar uma aquisição e, em particular, sobre se a taxa de juros aplicada refletia as condições de mercado. A autoridade belga adotou como referência um empréstimo bancário externo contratado pela mesma entidade, utilizando-o como internal CUP (Comparable Uncontrolled Price, ou Preço Comparável Não Controlado) após realizar ajustes de comparabilidade, enquanto a defesa da empresa se baseou em um estudo de comparáveis externos que foi finalmente descartado pelo tribunal.
Além do ajuste específico da taxa de juros, o caso destaca a importância de uma delimitação precisa das transações financeiras, a seleção rigorosa de comparáveis e a justificativa adequada dos ajustes necessários para alinhá-los com a realidade do mercado. Além disso, ressalta que o ônus da prova recai sobre o contribuinte, que deve comprovar técnica e documentalmente a razoabilidade das condições acordadas dentro do grupo. A decisão também destaca o risco de sanções por declarações incorretas, mesmo sem intenção de evasão, o que eleva o padrão de conformidade na documentação de preços de transferência e projeta implicações relevantes para a prática tributária na Europa e outras jurisdições com estruturas semelhantes.
Antecedentes factuais
- Em 2018, a “ACQ Lender”, uma entidade pertencente a um grupo empresarial, obteve financiamento para a aquisição de ações no valor de € 16 milhões.
- Este financiamento foi estruturado por meio de dois empréstimos:
- Um empréstimo externo de € 5,75 milhões obtido do banco ING, com juros variáveis de 1,75%.
- Um empréstimo intragrupo (o empréstimo do grupo) de valor semelhante, com taxa fixa de 5%, alegando que tal taxa era a “taxa interna padrão do grupo”.
- A “ACQ Lender” apresentou um estudo externo de comparativos que mostrava uma gama de taxas de juros entre 4,69% e 7,32% e sustentou que o empréstimo do ING não era comparável por ter características diferentes (por exemplo, sua natureza, condições, subordinação, termos de reembolso, risco, etc.).
Argumentação das autoridades fiscais
A autoridade belga sustentou que o empréstimo concedido pelo ING poderia ser considerado um CUP interno válido após os ajustes pertinentes para avaliar a transação intragrupo, uma vez que ambos os financiamentos estavam vinculados à mesma operação de aquisição e compartilhavam características relevantes em termos de montante, finalidade, moeda e temporalidade. No entanto, reconheceu a existência de certas diferenças entre os dois instrumentos, como o fato de um ter uma taxa fixa e o outro uma taxa variável, bem como variações nas condições de subordinação e nos prazos de reembolso. Para neutralizar essas diferenças, procedeu-se a ajustes de comparabilidade, a fim de obter uma base de referência mais precisa.
Após aplicar esses ajustes, a administração concluiu que a taxa de juros de mercado aplicável ao empréstimo intragrupo deveria situar-se em torno de 3,32%, e não nos 5% originalmente acordados. Consequentemente, considerou que a diferença representava uma despesa não dedutível e emitiu uma liquidação que aumentava a base tributável da “ACQ Lender”, rejeitando a dedutibilidade do excesso de juros.
Decisão judicial
O Tribunal de Primeira Instância belga decidiu confirmar a avaliação realizada pela administração tributária, rejeitando expressamente o estudo de comparáveis externos apresentado pela empresa. Na opinião do tribunal, as diferenças apontadas pela defesa em relação ao empréstimo concedido pelo ING não eram suficientemente substanciais para excluí-lo como ponto de comparação, especialmente considerando os ajustes de comparabilidade já aplicados pela autoridade. Em sua análise, o Tribunal destacou que tanto o empréstimo bancário quanto o intra-grupo compartilhavam elementos essenciais em termos de finalidade – financiar a aquisição de ações -, bem como em montante, moeda e horizonte temporal, o que permitia tratá-los como transações comparáveis sob o princípio da plena concorrência.
Com base nisso, concluiu que a taxa fixa de 5% acordada no empréstimo intragrupo não estava alinhada com as condições de mercado, confirmando como referência a taxa ajustada de aproximadamente 3,32% determinada pela administração. Além disso, o Tribunal manteve a imposição de uma sanção de 10% por declaração incorreta, enfatizando que sua aplicação era procedente mesmo na ausência de intenção de evasão fiscal, pois a contestação recaía sobre um aspecto factual relacionado à determinação correta da taxa de juros de mercado e não sobre uma controvérsia jurídica de fundo.
Relação com as Diretrizes da OCDE
Este caso pode ser analisado à luz das Diretrizes de Preços de Transferência da OCDE 2022, especialmente os capítulos sobre transações financeiras e o método CUP:
1. Capítulo X, Transações Financeiras, parágrafos 10.94-10.95:
- Reconhece que os empréstimos externos do grupo com credores independentes podem servir como comparáveis internos se cumprirem os critérios de comparabilidade.
- Indica que não se deve descartar automaticamente um CUP interno se as condições econômicas relevantes (montante, prazo, risco, condições de reembolso, condições de mercado, etc.) forem semelhantes.
2. Ajustes de Comparabilidade: A necessidade de ajustar diferenças que possam afetar o preço ou as condições econômicas do empréstimo, como taxa fixa vs. variável, subordinação, prazo, condições de amortização, garantias, etc. Esse tipo de ajuste foi central na análise das autoridades e endossado pelo Tribunal.
3. Método CUP vs outros métodos: As Diretrizes favorecem o método CUP como um dos mais confiáveis quando há comparáveis adequados. Neste caso, o Tribunal sustentou que havia um comparável confiável (ING) após ajustes, o que reduz o peso de outros métodos ou estudos externos que não conseguiram distinguir adequadamente as diferenças de comparabilidade.
4. Ónus da prova (Burden of Proof): A decisão reitera que a empresa tem a responsabilidade de demonstrar que sua taxa intragrupo está alinhada com as condições de mercado e que os comparáveis que oferece devem ser verdadeiramente comparáveis de acordo com os critérios estabelecidos. A “ACQ Lender” apresentou um estudo de comparáveis externos, mas o Tribunal encontrou falhas suficientes para descartá-lo.
Conclusão
A controvérsia analisada deixa lições práticas de grande relevância para os grupos multinacionais em matéria de financiamento intragrupo e preços de transferência. A decisão reafirma que a delimitação precisa da operação é um requisito essencial: termos como a natureza da taxa (fixa ou variável), o prazo, as garantias, a subordinação ou o calendário de reembolso devem ser claramente definidos, documentados e justificados. Além disso, qualquer diferença entre o empréstimo analisado e os comparáveis utilizados deve ser identificada e ajustada de forma técnica e transparente, caso contrário, a análise pode ser facilmente rejeitada.
A decisão também destaca que um empréstimo externo obtido pela mesma entidade pode constituir um CUP interno válido, desde que, após os ajustes pertinentes, mantenha a comparabilidade necessária. Da mesma forma, os estudos externos de comparáveis, embora úteis, só serão persuasivos na medida em que se baseiem em metodologias sólidas e expliquem adequadamente as diferenças identificadas. O Tribunal belga foi claro ao afirmar que o ônus da prova recai sobre o contribuinte, que deve demonstrar que a taxa aplicada reflete as condições de mercado.
Por fim, a confirmação de sanções sem a necessidade de comprovar intenção fraudulenta reforça o padrão de conformidade para as multinacionais. A lição central é que a documentação deve ir além do cumprimento de formalidades: deve refletir uma análise real, robusta e defensável perante a autoridade e um tribunal. Consequentemente, este precedente fortalece a posição das administrações tributárias europeias e transmite uma mensagem clara: os grupos que recorrem ao financiamento intragrupo devem estar preparados para sustentar rigorosamente suas decisões sob o princípio da plena concorrência.
Fonte: TPCases