As indústrias farmacêutica e automotiva representam dois segmentos com presença global significativa, cadeias de valor complexas e um amplo perfil de operações intragrupo. Nesse contexto, as disputas sobre preços de transferência têm sido uma constante: auditorias, procedimentos de acordo mútuo (MAP) e solicitações de Acordos de Preços Antecipados (APA) exemplificam esse grau de atenção por parte das autoridades fiscais. Essas controvérsias giram principalmente em torno da atribuição de funções, riscos e ativos – especialmente intangíveis – e da determinação de margens adequadas para entidades com funções rotineiras.
Este artigo explora os pontos de conflito mais comuns em ambos os setores, identifica semelhanças e diferenças e oferece reflexões sobre como as empresas podem enfrentar esses desafios em sua política de preços de transferência.
Cadeia de valor e organização operacional: semelhanças funcionais
À primeira vista, os setores automotivo e farmacêutico podem parecer muito diferentes. No entanto, da perspectiva da análise de funções, ativos e riscos (FAR), existem vários paralelos:
- Ambos realizam atividades intensivas em pesquisa e desenvolvimento (P&D): no setor automotivo, para design tecnológico, melhorias e novos modelos; no setor farmacêutico, para o desenvolvimento de moléculas, ensaios clínicos e regulamentação complexa.
- As empresas de ambos os setores fabricam produtos que são posteriormente comercializados em várias jurisdições, com distribuição principalmente por meio de terceiros (distribuidores, redes de farmácias, concessionárias).
- As cadeias de suprimentos envolvem o movimento transfronteiriço de componentes ou matérias-primas, o que exige levar em consideração os preços de logística, alfândega e margens intermediárias.
- As marcas ou a reputação do produto são fatores de valor relevantes em ambas as indústrias, embora a origem do valor da marca possa ser diferente (tecnologia/inovação no setor automotivo vs. reputação científica, eficácia clínica e marca comercial no setor farmacêutico).
Essas semelhanças funcionais fazem com que certos desafios de preços de transferência (por exemplo, encontrar comparáveis adequados, ajustar diferenças funcionais, justificar intervalos) se apresentem em ambas as indústrias.
Áreas críticas de controvérsia em ambas as indústrias
1. Margens de fabricação e distribuição
Um dos focos habituais de disputa é a remuneração de entidades que realizam funções consideradas rotineiras: montagem, distribuição, armazenamento, logística. Embora essas funções possam parecer simples, a controvérsia centra-se em: A escolha do comparável adequado para fixar a margem (margem de lucro líquido, margem de venda, etc.).
- Ajustes funcionais para diferenças em volume, risco, condições de mercado, ambiente regulatório.
- A inclusão ou exclusão de certos custos “pass-through” (custos que não são marcados) em relação aos custos que devem ser objeto de markup.
- No setor automotivo, a limitação de comparativos independentes para distribuidores de automóveis em certos países pode dificultar o benchmarking.
2. Intangíveis “difíceis de avaliar”
No setor farmacêutico, a controvérsia com intangíveis é mais pronunciada:
- Ativos como moléculas em fase de desenvolvimento, patentes emergentes ou tecnologias em evolução têm valor incerto e pouca comparabilidade, o que cria um risco inerente de disputas.
- O longo prazo entre o investimento em P&D e a receita efetiva pode fazer com que as autoridades questionem se uma entidade local ou intermediária agregou valor suficiente ou se deve receber uma parte dos benefícios residuais.
- No setor automotivo, embora existam intangíveis tecnológicos e de marca, eles tendem a estar mais concentrados na matriz ou em uma única jurisdição, o que simplifica a alocação de benefícios residuais.
3. Acordos de compartilhamento de custos (cost-sharing arrangements)
O uso de acordos de compartilhamento de custos – em que várias entidades do grupo compartilham custos de desenvolvimento em troca de participação futura nos lucros – é mais frequente na indústria farmacêutica:
- Existem controvérsias sobre se todas as entidades participantes têm substância suficiente para que o compartilhamento de custos seja válido.
- Também há debate sobre como estimar os benefícios esperados de forma justificada, incluindo fórmulas utilizadas, suposições de mercado, ajustes por riscos, etc.
- No setor automotivo, o uso de compartilhamento de custos é ainda menos comum, embora com a evolução para veículos elétricos, autonomia e software automotivo, esses acordos possam aumentar.
4. Regulamentação e distorções do mercado
Ambos os setores são fortemente regulamentados, o que complica a análise comparativa:
- Na indústria farmacêutica, a regulamentação afeta ensaios clínicos, aprovação de medicamentos, preços regulados (reembolso estatal, mecanismos de controle de preços).
- A regulamentação impõe custos, riscos e prazos que devem ser adequadamente imputados na análise funcional para determinar qual entidade assume esses riscos.
- No setor automotivo, as regulamentações sobre emissões, segurança, eficiência de combustível, padrões técnicos e incentivos para veículos elétricos podem alterar o panorama competitivo e as expectativas de retorno.
- Além disso, incentivos governamentais, subsídios ou regulamentações locais podem favorecer um país em relação a outro, introduzindo distorções que devem ser consideradas ao avaliar comparativos.
Diferenças fundamentais entre os setores
- Complexidade dos intangíveis: O setor farmacêutico enfrenta um grau maior de incerteza e dificuldade na avaliação de intangíveis emergentes, o que o coloca em um terreno mais controverso em relação ao setor automotivo, onde os intangíveis podem ser mais definíveis (marcas, designs, know-how tecnológico).
- Distribuição do DEMPE: Na indústria automotiva, é comum que as funções DEMPE (desenvolvimento, melhoria, manutenção, proteção, exploração) estejam concentradas em uma entidade central do grupo. Na indústria farmacêutica, essas funções podem estar mais distribuídas entre as entidades do grupo, aumentando o debate sobre quem merece a rentabilidade residual.
- Frequência e magnitude do compartilhamento de custos: O setor farmacêutico tende a utilizar mais o compartilhamento de custos devido à natureza de seu negócio baseado em pesquisa, enquanto o setor automotivo tem sido mais tradicional em estruturas centrais de desenvolvimento e distribuição.
- Problemas de capacidade ou excesso de infraestrutura: No setor automotivo, pode haver contenção de capacidade ou subutilização de fábricas, debates sobre se é razoável considerar margem adicional por essas instalações.
Implicações práticas para as políticas de preços de transferência
A gestão de preços de transferência em setores regulamentados requer uma abordagem integral. É fundamental definir claramente o modelo DEMPE, apoiando com evidências quais entidades assumem funções sobre intangíveis. Também é fundamental aplicar uma análise rigorosa de comparáveis, evitando referências superficiais e recorrendo a metodologias especializadas quando os intangíveis são difíceis de avaliar.
No caso dos acordos de compartilhamento de custos, deve-se demonstrar substância econômica real, fundamentos sólidos na distribuição de benefícios e premissas razoáveis. Da mesma forma, a rapidez com que a regulamentação e a concorrência evoluem obriga a revisar periodicamente as políticas de TP para ajustá-las a novos riscos e incentivos. Por fim, ferramentas como APAs e MAPs tornam-se mecanismos essenciais para garantir certeza e reduzir a probabilidade de controvérsias.
Conclusão
As indústrias farmacêutica e automotiva compartilham estruturas globais robustas e estão naturalmente expostas ao escrutínio dos preços de transferência. No entanto, a forma como esse escrutínio se manifesta difere consideravelmente: a farmacêutica lida com intangíveis difíceis de avaliar, longos prazos de desenvolvimento e acordos complexos de compartilhamento de custos; a automotiva enfrenta desafios de comparabilidade em funções rotineiras, regulamentação de emissões e ajustes por capacidade ociosa.
Para as empresas que operam nesses setores, o caminho para uma política de preços de transferência defensável requer:
- Clareza na atribuição de funções e riscos
- Documentação robusta e estruturada
- Vigilância constante do ambiente regulatório e do mercado
- Estratégias proativas de prevenção de controvérsias
Garanta a conformidade e reduza os riscos fiscais
As controvérsias em matéria de preços de transferência podem ter um alto custo financeiro e reputacional para as empresas multinacionais. Contar com assessoria especializada permite estruturar políticas sólidas, documentar adequadamente as operações intragrupo e antecipar as exigências das autoridades fiscais.
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Fonte: ITR